quarta-feira, 17 de março de 2021

Crônica: No restaurante- Carlos Drummond de Andrade

 (Foto: Reprodução)

        Carlos Drummond de Andrade nasceu na cidade de Itabira do Mato Dentro (MG), em outubro de 1902. Filho de pais ricos, estudou em colégios internos durante a infância e chegou a ser expulso de uma das instituições por insubordinação a um professor de português.

        Na juventude, o escritor se formou farmacêutico pela Universidade Federal de Minas Gerais por vontade do pai. Ele não chegou a atuar na profissão, e acabou dando aulas de português e geografia e trabalhando como tradutor de títulos de autores como Bertolt Brecht e Federico García Lorca.

        Ainda na época da faculdade, Drummond conheceu jovens que tinham pensamentos um pouco diferentes dos dele. Como seu pai era coronel, o autor cresceu em uma família conservadora e tinha ideias político-sociais mais alinhadas à direita. Contudo, quando se tornou universitário conheceu pessoas de realidades diferentes e foi transformando sua visão de mundo

        Faleceu em 17 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro.

https://revistagalileu.globo.com/Vestibular-e-Enem/noticia/2019/10/vida-e-obra-de-carlos-drummond-de-andrade-um-dos-maiores-poetas-do-brasil.html

            No restaurante

            – Quero lasanha!

        Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

        O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

        – Meu bem, venha cá.
        – Quero lasanha.
        – Escute aqui, querida. Primeiro escolhe-se a mesa.
        – Não, já escolhi. Lasanha.

        Que parada – lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

        – Vou querer lasanha.
        – Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
        – Gosto, mas quero lasanha.
        – Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
        – Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
        – Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
        – Você come camarão e eu como lasanha.

        O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:

        – Quero uma lasanha.

        O pai corrigiu:

        – Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

        A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

        – Moço, tem lasanha?
        – Perfeitamente, senhorita.

        O pai, no contra-ataque:

        – O senhor providenciou a fritada?
        – Já, sim, doutor.
        – De camarões bem grandes?
        – Daqueles legais, doutor.
        – Bem, então me vê um chinite, e pra ela… O que é que você quer, meu anjo?
        – Uma lasanha.
        – Traz um suco de laranja pra ela.

        Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

        – Estava uma coisa, hem? – comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. –    Sábado que vem, a gente repete… Combinado?
        – Agora a lasanha, não é, papai?
        – Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
        – Eu e você, tá?
        – Meu amor, eu…
        – Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.

        O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem.


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