Outro autor de destaque é o mineiro Fernando Sabino, escritor do texto " A última crônica", que ilustra o percurso do ato criativo deste gênero.
https://novaescola.org.br/conteudo/5886/cronicas-reflexoes-sobre-o-cotidiano
O marreco que pagou o pato.
O marreco Quércia - deixa-me explicar
- ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa Agro Dora, na Rua da
Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros circulando pela calçada
e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o gerente da loja foi
surpreendido com a presença de um fiscal, que muito compenetrado perguntou se o
marreco era de sua propriedade. Diante da resposta positiva, virou-se para o
gerente e pediu:
"Seus documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e
disse: "Agora deixe-me ver os documentos do marreco".
- O marreco não tem documentos -
respondeu o gerente.
- Nenhum? Nem título de eleitor?
Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que prender o seu
marreco.
- O senhor não pode fazer uma coisa
dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue marrecos a ter
documento.
- Não há? - desconfiou o fiscal. -
Então espere um momentinho.
Foi ao telefone e ligou para o chefe
da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco passeando pela rua sem
documento".
- Que está esperando? - vociferou o
chefe. - Prenda-o por vadiagem.
- Mas, chefe, é um marreco.
Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número dessa
lei?
- Não tenho a menor ideia.
- Então pergunta se alguém aí sabe.
- Alguém aí sabe - perguntou o chefe,
voltando-se para os funcionários da repartição - quais são os documentos que um
marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?
Não. Ninguém sabia. O chefe então
sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o marreco. "Mas
que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de imaginação.
- O marreco está nu? - Indagou o
chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.
O fiscal parou um pouco, pensou e não
se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não, essa era demais. O
chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O marreco está parado
em cima da calçada?"
- Está.
- Então prenda-o por estacionar em local proibido.
"Boa ideia", pensou o
fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada ao lado do marreco,
disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a falta de
documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por estar parado
em local não permitido.”
- Está certo - concordou, irritado, o
gerente -, mas então chama o guincho.
- Pra que guincho?
- Meu marreco só sai daqui rebocado.
Formou-se a maior confusão em torno
do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e o gerente, apoiado
por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco. Nisso, chegou um
segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro e decretou:
"O marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição".
- Agente de quem? - espantou-se um
balconista da loja. - Garanto que não.
O Quércia trabalha aqui há mais de
dois anos.
- E daí? - interveio um popular que
estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver que quando sai
daqui faz um bico em alguma agência.
- E você acha que o marreco, com esse
bico, ainda precisa fazer outro?
- A acusação é injusta - interrompeu
o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se eu tivesse aqui um
elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o Quércia nem fuma.
- Não interessa - afirmou o segundo
fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o chefe.
O marreco entrou na sede da
Administração Regional da Sé cheia de ginga.
Imediatamente o chefe destacou um
funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil, essas coisas.
De gravata e camisa de manga curta, o
burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O gerente com o
marreco no colo respondeu: "Quércia".
- Quércia de quê?
- De nada.
- Como de nada? Ele não tem família?
- Tem. É da família dos anatídeos.
- Então - prosseguiu o funcionário
batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.
Terminada a ficha o burocrata abriu
uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as impressões digitais,
disse ao gerente:
- Me dá aí o polegar do marreco.
- O marreco não tem polegar -
desculpou-se o gerente.
- Não? - disse o funcionário já
contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. - Então me dá o
indicador.
- O marreco também não tem indicador.
- E o anular, tem?
- Também não, senhor.
- Poxa - chateou-se o burocrata -,
então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.
O gerente precisou explicar que
marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já meio
perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e
perguntou: "Uma pata?".
-
Não. Duas.
- E ele vive bem com as duas?
Custou pouco para desfazer a
confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para outra sala,
onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de identificação.
- Assim como? - indagou o funcionário
sem entender.
- Sem gravata?
- Não sei - disse o funcionário meio
reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar gravata.
- Acho melhor botar uma gravata nele
- retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse que foto só de
gravata.
O funcionário tirou sua gravata,
pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e
depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São
Paulo diminuiu sensivelmente...
(Fonte:
Novaes, C.E. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1996.
p. 77-81.)
Sobre o autor: Carlos Eduardo Noves
Carlos Eduardo de Agostini Novaes (Rio de Janeiro RJ 1940). Cronista, romancista, contista e dramaturgo. Filho do oficial da Marinha Attila Rodrigues Novaes e da dona-de-casa Efigenia de Agostini Novaes. Em 1958, muda-se para Salvador, onde permanece por dez anos. Nesse período cursa direito na Universidade Federal da Bahia e exerce variadas atividades profissionais, como agente rodoviário, e é também dono de dedetizadora e sócio de uma fábrica de sorvete. De volta ao Rio de Janeiro, em 1969, inicia a atividade de cronista no jornal Última Hora. Em 1972, trabalha no Jornal do Brasil - JB, criando prognósticos bem-humorados para a Loteria Esportiva e passando depois a cronista. Assim nasce seu primeiro livro, O Caos Nosso de Cada Dia, uma reunião de crônicas escritas para o JB, publicado em 1974. O trabalho nesse jornal se estende por 13 anos e dá origem à maior parte de seus livros. No teatro, além de atuar, escrever e dirigir várias peças, é presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - Sbat e vice-presidente da Federação Internacional de Sociedades de Autores Dramáticos - Fedra. Seus livros abordam, entre outros, temas ligados à política brasileira, ao cotidiano urbano, à vida conjugal e ao universo adolescente, sempre de forma crítica e bem-humorada. É diretor da Casa do Riso, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, um teatro dedicado exclusivamente ao humor.
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