O nascimento da crônica moderna se deu entre os séculos 14 e 15, em Portugal. Como cronista real, Fernão Lopes (1380?- 1460?), guarda-mor da Torre do Tombo em Portugal, tinha o papel de registrar e arquivar a cronologia dos reinados e de toda a história das dinastias portuguesas. Lopes foi o primeiro a produzir textos com características modernas: a autoridade das informações advinha da referência documental, o autor mantinha-se distante e neutro em relação aos fatos, buscando narrar a realidade afastado das emoções e subjetividades. O gênero tinha, então, um viés historiográfico.
A partir do século 19, através de sua difusão no meio jornalístico, os autores passam a utilizar a crônica como meio de análise subjetivos de acontecimentos cotidianos, comentando temas próximos aos leitores de jornal.
No Brasil, o caráter mais breve e informal do gênero permitiu que ele fosse utilizado como espaço de exercício para grandes autores como José de Alencar, Manuel Antonio de Almeida, Raul Pompéia e Machado de Assis no século 10 e Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, João do Rio, Lima Barreto, Fernando Sabino, entre outros do século 20. Entretanto, grandes escritores tiveram seu talento reconhecido por conta de textos do gênero que publicavam nas páginas de jornais e revistas, como Luís Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony e Mário Prata.
Destes, Rubem Braga (1913-1990) é o principal representante. Seu trabalho, publicado ao longo de sua vida em diversos jornais, compilações e antologias, acabou por elevar a crônica ao patamar de grande literatura.
Outro autor de destaque é o mineiro Fernando Sabino, escritor do texto " A última crônica", que ilustra o percurso do ato criativo deste gênero.
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O marreco que pagou o pato.
Semana passada, São Paulo, apesar de
toda fama de que não pode parar, parou. E não foi num congestionamento. Parou
para discutir o caso do marreco Quércia e sua marreca Amélia, presos e
engaiolados durante 24 horas sob a acusação de poluírem o meio ambiente. Diante
do fato, eu fico aqui pensando que os paulistas já devem ter resolvido todos os
seus grandes problemas urbanos. Sim, claro: quando um povo começa a prender
marrecos é porque não tem mais nada para fazer.
O marreco Quércia - deixa-me explicar
- ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa Agro Dora, na Rua da
Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros circulando pela calçada
e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o gerente da loja foi
surpreendido com a presença de um fiscal, que muito compenetrado perguntou se o
marreco era de sua propriedade. Diante da resposta positiva, virou-se para o
gerente e pediu:
"Seus documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e
disse: "Agora deixe-me ver os documentos do marreco".
- O marreco não tem documentos -
respondeu o gerente.
- Nenhum? Nem título de eleitor?
Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que prender o seu
marreco.
- O senhor não pode fazer uma coisa
dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue marrecos a ter
documento.
- Não há? - desconfiou o fiscal. -
Então espere um momentinho.
Foi ao telefone e ligou para o chefe
da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco passeando pela rua sem
documento".
- Que está esperando? - vociferou o
chefe. - Prenda-o por vadiagem.
- Mas, chefe, é um marreco.
Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número dessa
lei?
- Não tenho a menor ideia.
- Então pergunta se alguém aí sabe.
- Alguém aí sabe - perguntou o chefe,
voltando-se para os funcionários da repartição - quais são os documentos que um
marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?
Não. Ninguém sabia. O chefe então
sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o marreco. "Mas
que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de imaginação.
- O marreco está nu? - Indagou o
chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.
O fiscal parou um pouco, pensou e não
se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não, essa era demais. O
chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O marreco está parado
em cima da calçada?"
- Está.
- Então prenda-o
por estacionar em local proibido.
"Boa ideia", pensou o
fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada ao lado do marreco,
disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a falta de
documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por estar parado
em local não permitido.”
- Está certo - concordou, irritado, o
gerente -, mas então chama o guincho.
- Pra que guincho?
- Meu marreco só sai daqui rebocado.
Formou-se a maior confusão em torno
do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e o gerente, apoiado
por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco. Nisso, chegou um
segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro e decretou:
"O marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição".
- Agente de quem? - espantou-se um
balconista da loja. - Garanto que não.
O Quércia trabalha aqui há mais de
dois anos.
- E daí? - interveio um popular que
estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver que quando sai
daqui faz um bico em alguma agência.
- E você acha que o marreco, com esse
bico, ainda precisa fazer outro?
- A acusação é injusta - interrompeu
o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se eu tivesse aqui um
elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o Quércia nem fuma.
- Não interessa - afirmou o segundo
fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o chefe.
O marreco entrou na sede da
Administração Regional da Sé cheia de ginga.
Imediatamente o chefe destacou um
funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil, essas coisas.
De gravata e camisa de manga curta, o
burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O gerente com o
marreco no colo respondeu: "Quércia".
- Quércia de quê?
- De nada.
- Como de nada? Ele não tem família?
- Tem. É da família dos anatídeos.
- Então - prosseguiu o funcionário
batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.
Terminada a ficha o burocrata abriu
uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as impressões digitais,
disse ao gerente:
- Me dá aí o polegar do marreco.
- O marreco não tem polegar -
desculpou-se o gerente.
- Não? - disse o funcionário já
contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. - Então me dá o
indicador.
- O marreco também não tem indicador.
- E o anular, tem?
- Também não, senhor.
- Poxa - chateou-se o burocrata -,
então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.
O gerente precisou explicar que
marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já meio
perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e
perguntou: "Uma pata?".
-
Não. Duas.
- E ele vive bem com as duas?
Custou pouco para desfazer a
confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para outra sala,
onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de identificação.
O fotógrafo, repetindo gestos tão
automáticos quanto a máquina, mandou o marreco subir na cadeira, esticar bem o
pescoço, olhar para a frente e não se mexer. O marreco, mesmo sem entender
nada, seguiu as instruções do fotógrafo. Quando enfiou a cabeça por debaixo do
pano preto - a máquina era daquelas antigas -, observou pelo visor que alguma
coisa estava errada. Tornou a levantar a cabeça e indagou do funcionário:
"Nós vamos fotografá-lo assim?
- Assim como? - indagou o funcionário
sem entender.
- Sem gravata?
- Não sei - disse o funcionário meio
reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar gravata.
- Acho melhor botar uma gravata nele
- retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse que foto só de
gravata.
O funcionário tirou sua gravata,
pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e
depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São
Paulo diminuiu sensivelmente...
(Fonte:
Novaes, C.E. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1996.
p. 77-81.)
Sobre o autor: Carlos Eduardo Noves

Carlos Eduardo de
Agostini Novaes (Rio de Janeiro RJ 1940). Cronista, romancista, contista e
dramaturgo. Filho do oficial da Marinha Attila Rodrigues Novaes e da
dona-de-casa Efigenia de Agostini Novaes. Em 1958, muda-se para Salvador, onde
permanece por dez anos. Nesse período cursa direito na Universidade Federal da
Bahia e exerce variadas atividades profissionais, como agente rodoviário, e é
também dono de dedetizadora e sócio de uma fábrica de sorvete. De volta ao Rio
de Janeiro, em 1969, inicia a atividade de cronista no jornal Última
Hora. Em 1972, trabalha no Jornal do Brasil - JB, criando
prognósticos bem-humorados para a Loteria Esportiva e passando depois a
cronista. Assim nasce seu primeiro livro, O Caos Nosso de Cada Dia,
uma reunião de crônicas escritas para o JB, publicado em 1974. O
trabalho nesse jornal se estende por 13 anos e dá origem à maior parte de seus
livros. No teatro, além de atuar, escrever e dirigir várias peças, é presidente
da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - Sbat e vice-presidente da
Federação Internacional de Sociedades de Autores Dramáticos - Fedra. Seus
livros abordam, entre outros, temas ligados à política brasileira, ao cotidiano
urbano, à vida conjugal e ao universo adolescente, sempre de forma crítica e
bem-humorada. É diretor da Casa do Riso, no bairro do Leblon, no Rio de
Janeiro, um teatro dedicado exclusivamente ao humor.